Li pela primeira vez Reparação de Ian McEwan, sua obra prima, editada em 2001, em um exemplar emprestado por seu dono, o poeta Fernando Sérgio Lira, que me fez duas recomendações: sobre a qualidade do autor que até então me era desconhecido e sobre a necessidade de lhe devolver o livro tão logo fosse lido, uma demonstração cabal que a obra merecia ser lida e guardada em estante até segundas leituras ou outras mais. Assim fiz, li e reli, mas em meu próprio exemplar. O olhar duro, cruel da anti-heroína, a imaginativa Briony Tallis, uma menina que escrevia peças e colocava os que estavam ao seu redor a encená-las, tendo apenas 11 anos, e que por um falso, doloso ou equivocado testemunho fez estragos irreparáveis na vida de sua irmã mais velha Cecília e Robbie, o jovem amado de sua irmã e, porque não, por ela, filho dos empregados da grande mansão. É uma acusação séria em uma noite de enredo crítico passível de conclusões apressadas. Uma ilusão de ótica, uma errada interpretação, 11 anos de idade são suficientes para assimilar o que realmente se vê? O mal está feito. Transpirando um denso clímax daí em diante, as vidas das três personagens separadas, desencontradas e cicatriciais se desenrolam ao longo do romance: Cecília e Robbie ainda purgam pelo crime que não cometeram, párias, destinados a não terem um final feliz; por outro lado, Briony amadurece, e, passa no decorrer do tempo a descobrir quais os verdadeiros criminosos daquela noite, assim se empenhando em buscar a redenção de Cecília e Robbie, agora, seus personagens; desesperadamente caça o perdão, a reparação. Obviamente, não é uma história de êxito feliz. É no desconcertante fracasso de não polir o irreparável, é onde está a maestria de McEwan; acena com uma enganosa esperança, mas depois, prevalece o provável.
Na praia de 2007, uma enxuta novela, ratifica o poder ficcional de Ian McEwan ao expor uma história simples envolvendo um casal de jovens em 1962 que apaixonados se casam virgens: Edward Mayhew, um jovem recém formado em História de origem provinciana rural, filho de uma insana mental e de um professor secundarista, alcançando as ambições familiares de entrar no meio acadêmico da grande capital e Florence Ponting, líder de quarteto de cordas, filha de um industrial e de uma professora universitária de Oxford, enamorados se casam e se deslocam para uma cabana em uma praia de Gales. Filhos de uma gama de preconceitos herdada através dos circuitos familiares de cada um, dosado de modo menos ou mais denso o vitorianismo que ainda os cerca no ano de 1962, eles sozinhos passarão sua primeira noite de núpcias junto ao mar. Apesar de jovens e dispostos a iniciar uma vida até o fim dos dias com argamassa do amor, a noite que os testemunhará na cabana da praia, não só verá as contradições de produtos cultural de suas famílias; verá além, a juventude inglesa nascida ainda entre os últimos bombardeios sobre Londres, que tem sede e medo das descobertas que se desfilam no mundo: a Guerra Fria, JFK nos EUA se tornando um tácito símbolo dos dias futuros de paz, progresso para o mundo livre; uma geração que ainda não perdeu sua inocência para o que está por vir – a Guerra do Vietnã, o movimento estudantil de 1968 na França, LSD, Woodstock, a pílula anticoncepcional, a pegada do astronauta em solo lunar. E sob o imenso desejo sexual, a difícil transgressão dos limites de cada um em explorar o corpo do parceiro, buscando prazer, atendendo a preconceitos ou colocando o provável ou imaginado em prática, os amantes se confrontam com conceitos e especulações particulares e as primeiras núpcias de ansiada longa vida conjugal; as histórias que começam felizes não caminham para uma razoável conclusão, mais uma vez o anticlímax de McEwan flui.
A Balada de Adam Henry, publicado em 2014, é outro poderoso exemplo da obra significativa deste inglês que sem dúvida é um dos escritores da contemporaneidade, onde a personagem principal é a juíza Fiona Maye que vive intensamente a rotina na corte de justiça, dando suas sentenças sempre com sólido embasamento ante litígios que são explorados pela mídia. Mas, ela também vive seus litígios pessoais: com Jack, seu marido que agora questiona seu papel de mulher que renunciou à maternidade e às implicações naturais da vida conjugal para se dedicar aos estudos jurídicos e, posteriormente à própria carreira. Em meio a maior crise com Jack, que sai de casa, ela se vê na hora de decidir sobre a vida de Adam Henry, um rapaz com leucemia, necessitando de uma transfusão sanguínea para voltar a ter chances de viver, mas Adam Henry é testemunha de Jeová, seus pais são testemunhas de Jeová convictos. Mas Adam Henry é de menor, alguns meses lhe separam dos 18 anos. O hospital onde Adam está internado entra em uma ação judicial contra os responsáveis do doente, seus pais que não deram autorização ao tratamento. O processo de desenvolve entre audiências e mais audiências, enquanto isso, Fiona decide conhecer o jovem e vai visitá-lo. O diálogo entre os dois é onde nasce um relacionamento revelador e sensível, pois, apesar de ser obediente aos preceitos codificados pelo pastor americano Charles Taze Russell (1852-1916), apesar de jovem é maduro para a sua idade, é dialético e poético. Fascinante, Fiona fica dividida entre aceitar as razões de uma fé religiosa sem estremecimentos ou salvar a vida de poucos anos que prenuncia uma existência prolongada e de possíveis méritos e de desdobramentos de grandeza. A juíza decide pelas transfusões e pelas particularidades específicas dos tratamentos, salva a vida de Adam. As últimas páginas, se aceleram os acontecimentos: Jack volta para casa, apesar de não mais este desejo de Fiona; Adam Henry ressuscitado, abandona a sua religião cristã não trinária, prossegue a viver, objetivando a figura de Fiona, começa a persegui-la como uma obsessão; sugestionando uma frustação pela descrença que lhe invadiu, é beijado acidentalmente pela juíza que de imediato o rejeita, suas convicções de mulher madura freia um desejo. A balada escrita por Adam Henry é um poema de quem rejeita Deus e é rejeitado pela primeira mulher por quem se apaixona. Só resta o final que parece inconcluir o enredo, desnorteante.
Mas é em Enclausurado, livro de 2016, que McEwan chega ao inimaginável, quando um feto, personagem central da trama, talvez um esboço de reencarnação de um certo príncipe dinamarquês, ainda habitando o útero de sua mãe, é capaz de ouvir o que se arquiteta com trama: sua mãe é amante de seu tio, irmão de seu pai; os dois pensam no homicídio perfeito. É entre ouvidos colados nas paredes do útero, são pelos sinais corpóreos da mãe – aumento das frequências respiratória e cardíaca, e, no titubear do andar, é até no aumento do pulsar das artérias cerebrais que percebe prováveis pesadelos da candidata homicida, que seus pronunciamentos se fazem sob o cânone shakespeariano, mas sob o embalar da tensão narrativa do criador de Bryone.
Por isso, ler Ian McEwan, é ao aficcionado por literatura uma lição de como construir um grande enredo, como fazer de uma redação livresca, um elaborado ensaio ficcional, se assim, se pode dizer. Ao leitor comum, a um bom leitor, McEwan não só proporcionará o diletante entretenimento, mas uma atual análise dos sentimentos humanos, ainda que a humanidade cada vez se submeta aos artifícios da tecnologia, e pela rápida transformação dos costumes pareça fadada a obedecer à máquinas no futuro próximo, os sentimentos ainda prevaleçam, embora, possam ser um dia, lembranças antropológicas em estudo por uma civilização sucessora à nossa.
E não se pode encerrar estas impressões de leitura sem Briony Tallis, a maior personagem de McEwan, que sobrevivente de uma guerra, das vidas infelizes dos amantes Cecília e Robbie que assim foram até a morte, do seu imenso remorso que lhe impregna a vida, já aos cinquenta e nove anos, por um equívoco de ver o que não viu aos onze anos; de fazer-se um escritora reconhecida da garota que já burilava seus textos teatrais e colocava seus amiguinhos a representá-los, e, onde tudo eram exercícios alegres de uma grande imaginação; esta senhora que além do perdão, buscou a reparação de ato infantil, escrevendo uma outra história justaposta à real, onde tudo se conserta perfeitamente até o vislumbre de um final feliz, ela assim escreve: “O problema desses cinquenta e nove anos é este: como pode uma romancista realizar uma reparação se, com seu poder absoluto de decidir como a história termina, ela é também Deus? Não há ninguém, nenhuma entidade ou ser mais elevado que possa perdoá-la. Não há nada fora dela. Na sua imaginação ela determina os limites e as condições. Não há reparação possível para Deus nem para os romancistas, nem mesmo para os romancistas ateus. Desde o início a tarefa era inviável, e era justamente essa a questão. A tentativa era tudo.”
Sim, é tudo.