A tenente-coronel do Corpo de Bombeiros Militar de Alagoas (CBMAL), Camila Paiva, é, antes de tudo, uma alagoana arretada. Primeira oficial a assumir o comando de um grupamento operacional na capital, tornou-se bastante conhecida ao denunciar nas redes sociais que foi vítima de machismo praticado por um major da Polícia Militar ao ter uma foto sua de biquíni divulgada em um grupo de futebol da Associação dos Oficiais da PM e do CBM/AL no WhatsApp. O caso foi levado à Corregedoria da PM.
No vídeo divulgado pela militar feminista, em julho deste ano, ela diz que foi desrespeitada pelo grupo de homens com mensagens ofensivas e machistas. “Eles sabiam de quem se tratava e me desrespeitaram”, falou à reportagem do portal GazetaWeb. “Foi postado o meu vídeo de biquíni e, após isso, vem o comentário: ‘será que gosta de r… aí?’ Depois de repreendido, o major apagou o comentário, só que já tinha sido printado”.
A tenente-coronel acionou a Corregedoria. Ela também foi à Justiça por danos morais contra quem compartilhou a imagem com comentários pejorativos. “Tem homens, militares, oficiais, comandantes que postam foto de sunga, sem camisa, e isso nunca foi motivo para eles serem desrespeitados, virarem tema de roda de conversa, motivo para virarem centro de brincadeiras em grupo de WhatsApp. E nós, enquanto mulheres, não podemos postar foto de biquíni porque isso é uma desonra. Em pleno século 21, a gente tem que militar pelo direito de postar uma foto de biquíni”, disse a tenente-coronel.
Camila Paiva ingressou na corporação em 2002. Em 2004, foi elevada ao posto de 2ª tenente, tornando-se a primeira oficial combatente do CBMAL. Em seguida, foi promovida a major. E depois de 14 anos, em 2016, foi alçada à posição de primeira oficial a comandar um grupamento operacional na capital.
Filha de coronel da instituição, Camila Paiva nem pensava em ser bombeira. Queria ser médica. Fez o primeiro vestibular para medicina e não passou. No ano seguinte (2001), incentivada pelo pai, foi a primeira colocada no curso de formação de oficiais (CFO), o primeiro concurso que uma mulher poderia concorrer ao oficialato do Corpo de Bombeiros.
Quem acompanha a trajetória da tenente-coronel no seu Instagram @camilapaivabm, que já conta com mais de 40 mil seguidores, conhece sua luta em defesa da mulher.
MN – A senhora se considera um ícone de um movimento feminista dentro dos quarteis?
Cel. Camila – Não, não me acho um ícone. Ícone é uma palavra muito forte. Mas o feminismo é um tema muito difícil de ser trabalhado dentro dos quartéis. Até porque em todos os níveis, em todas as profissões, em todos os locais, existem uma repressão contra as mulheres, e no ambiente militar, porque a média do efetivo masculino fica em torno de 90%, com apenas 10% de mulheres, é que a questão fica mais acentuada. Então realmente é muito difícil que as mulheres consigam desenvolver e trabalhar esse tema, principalmente na posição que eu ocupo, que é de Oficial Superior de Tenente Coronel, porque é um embate muito grande. Não é comum de se trabalhar esse tema e, quer queira que não, fez com que eu criasse um destaque e uma certa referência dentro das corporações, diante da bandeira que levanto.
MN – As fotos de biquíni no Instragram da Tenente Coronel do Corpo de Bombeiros de Alagoas incomodam tanto a quem?
Cel. Camila – Como vivemos numa sociedade machista, então temos que entender um pouquinho a raiz do machismo. A raiz do machismo está em a sociedade e o homem se sentirem proprietários do corpo da mulher, porque sempre foi assim. Veem a mulher como objeto sexual. Ou seja, o corpo da mulher existe para satisfazer aos homens, aos seus desejos, às suas vontades, servir o homem, servir à casa, servir às famílias. Diferente do que acontece com o homem, que posta a foto que quer, com a roupa que quer, transa com quem quer, e isso nunca escandalizou. Mas o simples fato da mulher expor seu corpo, usar seu corpo para fazer as coisas que ela tem vontade, escandaliza. Na verdade, incomoda a todo mundo que foi criado nessa sociedade machista, com esses conceitos do machismo patriarcal, e ainda não se descontruiu, daí a causa desse incômodo. Eles foram ensinados, até inconscientemente, de que a mulher não pode ter o domínio sobre o próprio corpo, por isso incomoda ver uma mulher que faça isso.
MN – Pois é, o homem, seja qual cargo ele ocupe, se tem corpo atraente e bota uma sunga, faz o maior sucesso e ninguém vai criticá-lo por isso. Mas com a mulher realmente acontece o inverso. Quando mudaremos esse quadro?
Cel. Camila – Quando ela se rebelar contra os padrões que lhes são impostos. Mas enquanto a mulher se submeter e continuar no padrão da mulher submissa, recatada e do lar, submetendo-se às regras impostas pela sociedade, que é justamente onde ela é um objeto sexual, propriedade de alguém, que não tem o poder de decidir sobre o próprio corpo, seja no que ela veste, seja no que ela expõe, seja com quem ela se relaciona, nunca vamos mudar essa situação. A mulher só passa a incomodar quando sai do padrão que foi estabelecido para ela.
MN – Por que a liberdade do corpo feminino ainda é confundida com libertinagem?
Cel. Camila – As mulheres, desde a formação da sociedade, que decidiam fazer o que queriam com o corpo delas, eram vistas como prostitutas, como mulheres da vida, como mulheres que não são dignas de respeito. Porque na formação da sociedade, a mulher foi colocada numa posição de submissão à vontade do homem, à vontade da sociedade. Então, desde sempre, a mulher que se insurgiu contra isso, contra essa desobediência aos padrões, é vista como aquela mulher que não merece respeito, já que não segue uma conduta moral, o que não acontece com o homem.
MN – A maneira como uma mulher se veste não dá o direito de ninguém lhe dirigir termos pejorativos nem depreciativos. Mas o pensamento retrógrado toma como “fácil” uma mulher que gosta de usar minissaia, por exemplo. Por que atravessamos décadas, milênios, viramos séculos e a mentalidade tacanha do homem permanece tão primitiva?
Cel. Camila – Quando voltamos às origens, constatamos que o homem se estabeleceu como aquele que é o provedor, que sai para trabalhar, que é profissionalmente valorizado e remunerado, enquanto a mulher ficava em casa, e tinha um trabalho desvalorizado e não remunerado, com a justificativa de que “ah, não, ela faz isso por amor, ela faz isso porque gosta, ela faz isso porque é vocação da mulher”. Foi colocado isso dentro da mente do homem, da mulher, das famílias, e assim foi se formando a sociedade, com essa base. Isso é um machismo estrutural, ou seja, a sociedade foi toda estruturada dessa forma. Com base no machismo, no patriarcado, que é justamente o homem é quem manda, o homem que é o cabeça da família, o homem que é a referência, o homem que é o provedor, então, após isso, as instituições foram criadas exatamente com essa mesma linha. E assim foram criadas as Igrejas, as escolas, os bancos, as instituições militares, os governos. Tudo foi criado exatamente com essa linha de pensamento, com essa mesma fundação, para manter o status quo do homem. Então, por mais que essa sociedade se desenvolva, está lá na raiz essa formação. É por isso que ainda é tão forte esse tipo de pensamento, em virtude do machismo patriarcado estrutural, que vem desde a formação da sociedade e permanece até hoje.
MN – Qual o preço pago por uma mulher que não tem medo de viver sua sexualidade numa sociedade tão machista?
Cel. Camila – O preço que uma mulher que decide viver sua sexualidade, que toma posse de si, do seu corpo, paga, dentro dessa sociedade machista, é ela ser ofendida, difamada, descredibilizada, desrespeitada, porque a sociedade não aceita, inclusive outras mulheres. Elas veem naquela mulher que saiu do padrão, que saiu da linha, da qual todas foram criadas, como aquela que não merece respeito, porque se insurgiu contra as regras. Lógico que a maioria não tem essa noção consciente. Óbvio, elas receberam sua formação nessa sociedade, natural que tenham esse pensamento, mas na maioria das vezes nem é consciente.
MN – Quais situações relacionadas à sua condição de mulher foram mais complicadas ao longo da sua carreira profissional?
Cel. Camila – Foi no início. Eu era civil e ia entrar no meio militar, e isso me trouxe várias consequências. Primeiro, os desafios de mostrar que eu era competente, e às vezes ter que fazer mais do que o homem fazia. “Ah, o homem tá pegando peso, então vamos dar um peso ainda mais pesado para ela”. “Ela veio porque quis, ela tem que mostrar que merece tá aqui”. Muitas vezes eles mandavam fazer mais do que o homem, justamente para que a mulher – eu, no caso –, tivesse que reafirmar a minha condição de estar ali, a minha capacidade de ter chegado até ali. Outra coisa foi mudar muito o meu jeito de ser, precisamente para me adequar aos padrões. Porque uma mulher militar não pode ser expansiva, não pode ser extrovertida, não pode ser simpática, pois daí vai dar espaço para que os homens deem em cima dela, se aproximem dela, achem que ela é uma mulher fácil. Enfim, pelo fato de eu sempre estar envolvida em luta de classe, tenho uma representatividade, tenho destaque, as pessoas veem em mim uma líder, uma representante, causou muita resistência, principalmente junto aos meus superiores hierárquicos, assumir que uma mulher era vista como uma representante da classe, da categoria, ver que a tropa enxergava o espírito de liderança em uma mulher, e essa mulher sendo ela mesma, não tendo que se masculinizar, não tendo que deixar de ser quem ela era para poder ser respeitada, porque afinal é isso que a gente aprende, que é mais uma das dificuldades que a gente se submete dentro da formação militar, que, para sermos respeitadas, termos a nossa autoridade preservada, precisamos nos aproximar cada vez mais da referência de liderança, que com certeza é o homem. As instituições militares foram criadas pelos homens e para os homens, então a referência de autoridade, de comando, liderança, é o homem. Nós, mulheres, somos ensinadas a nos aproximar desse exemplo, porque, segundo eles, precisamos dessa referência para poder ter o respeito da tropa. E saber que uma mulher como eu, que fujo um pouco dos padrões, é considerada uma referência, uma liderança, isso tudo causou muita resistência.
MN – A senhora diria que precisou, em determinados momentos, travar alguma batalha para se safar do poderio machista?
Cel. Camila – Quando entrei no mundo militar e me foi ensinado tudo isso, de que eu não podia ser do jeito que eu era, porque não se adequava ao ambiente militar; quando fui ensinada que para ser respeitada como uma oficial, que para eu ter minha autoridade eu precisava me masculinizar, me aproximar da referência masculina, eu ainda o fiz por dez anos da minha vida. Até o momento em que eu decidi não fazer mais, até o momento em que eu me vi como dona de mim mesma. Eu disse não, não vou me submeter, vou ser exatamente quem eu sou. Essa foi a maior batalha: fazer com as pessoas entendessem, aceitassem e me respeitassem exatamente quem eu sou, na minha essência.
MN – Em 1949, a escritora feminista francesa Simone de Beauvoir publicou o livro “O Segundo Sexo”, que aborda questões ligadas à opressão feminina em busca da independência. Mas, embora depois de muitas décadas e vários movimentos feministas, a mulher ainda tem que dar socos em paradigmas simplesmente pela sua condição sexual. Por que é tão difícil para a supremacia masculina aceitar a mulher no mesmo patamar social, profissional e sobretudo sexual?
Cel. Camila – Existe toda uma estrutura dentro das famílias, das instituições, na sociedade como um todo, que fez com que a mulher jamais se aproximasse dessa condição de paridade, de equidade com o homem. E é justamente isso que o homem quer manter, essa condição de superioridade dele, que obviamente é o mais cômodo, é o mais interessante, que está na parte de cima, na parte de comando, da tomada de decisões. Quem está numa condição de superioridade que quer perder essa posição? Ninguém. Por isso que é tão difícil, porque como a estrutura da sociedade foi criada dessa forma, os homens querem manter esse status quo. Por isso que existe essa dificuldade tão grande de a mulher ascender a uma condição de paridade, não é nem ascender a uma condição de superioridade, mas que ela possa chegar a condição de equidade com o homem.
MN – Aliás, é da mesma escritora a célebre frase: “Ninguém nasce mulher: torna-se mulher”. É muito sangue que escorre, por dentro e por fora, ao tirar a mordaça da boca, quebrar as correntes dos pulsos e das pernas e querer transitar livre e independente pelas passarelas da sociedade?
Cel. Camila – Sim. Essa frase é muito significativa, pois somos ensinadas a aceitar todas essas regras, todos esses padrões, toda essa conduta que a mulher deve ter, deve ser. Ela (a escritora) explica muito bem, quando fala sobre as condições biológicas da mulher, que nem uma dessas características tidas como femininas – de gostar de cuidar da casa, dos filhos –, não é simplesmente porque nascemos assim; foi-nos ensinado que é nosso papel, e ao longo do tempo absorvemos, de forma que se transforma na verdade absoluta. Então é muito difícil, sim, escorre sangue, suor e lágrimas. Primeiro para que entendamos que se reconheça como uma peça, uma marionete dentro da sociedade em que fomos forçadas a acreditar nisso, nessa situação feminina, e fomos obrigadas a nos submeter. Então quando resistimos, quando nos insurgimos, quando não aceitamos, quebramos as correntes e tiramos as mordaças, existe uma pressão de toda uma sociedade, da família. Todos contra essa insurgência. Aí, sim, é um processo doloroso, não é uma processo de glória.
MN – Falando em comportamento, Madonna foi um símbolo de transgressão de uma ou mais gerações. Hoje, a cena artística não tem nenhuma diva pop que crie polêmica e provoque discussões nesse sentido. Nas últimas décadas o mundo “encaretou”? Parou de evoluir, regride, deu uma estagnada?
Cel. Camila – Sim, Madonna é um ícone, e lembro inclusive que ela foi muito criticada pelas feministas no auge da sua carreira, porque o processo de desconstrução é muito longo. Eu ainda estou nesse processo. Como já disse, a sociedade é construída com essas bases, muito sólidas, sobre o machismo, o patriarcado. Então até para nós, porque ninguém nasce feminista, é um processo você se desconstruir, se enxergar, e enxergar seu papel social. E muitas mulheres assustam demais, fora o fato de que uma das premissas do machismo é essa competição entre as mulheres. Eles criam essa competição, onde uma mulher representa uma ameaça para a outra. Cultiva-se isso porque o homem é o grande objetivo, o grande prêmio na vida de uma mulher; o homem é aquela luz que a mulher tem que buscar para poder ter uma vida feliz, iluminada e maravilhosa. E que a outra mulher é um empecilho para isso acontecer. Então, é isso que é incutido nas mentes da gente, desde a infância. Até nos filmes, nos desenhos. É sempre uma madrasta, uma irmã malvada, uma bruxa, sempre um papel de uma mulher impedindo a felicidade da outra, querendo destruir a outra, por inveja, por ciúme. É sempre essa ideia que nos é ensinada desde que somos criancinhas. E é justamente por causa disso que muitas mulheres começam a se colocar contra aquelas que querem sair da caixinha. Foi isso que aconteceu com Madonna. Não acho que o mundo parou de evoluir. Tivemos, sim, algumas mudanças, algumas revoluções. Temos a Lady Gaga, que é uma artista que também, de certa forma, quebrou alguns paradigmas no início de sua carreira, batendo de frente com dogmas religiosos, ao fazer clipes que associavam sexualidade com símbolos religiosos. Mas hoje, nos Estados Unidos, mas principalmente no Brasil, passamos, sim, por um certo retrocesso, devido à política partidária do conservadorismo do Trump, e da extrema-direita do governo Bolsonaro, que trouxe algumas regressões no nosso progresso contra o machismo.
MN – Qual a responsabilidade das vertentes políticas no comportamento da sociedade?
Cel. Camila – A extrema-direita representa justamente o conservadorismo, que vem com a máxima de família acima de tudo, Deus acima de todos, quando a gente sabe que isso só é aplicado para as mulheres. Essa fidelidade forçada, essa vida sexual ilibada, esses bons costumes e a moral que é definida para as mulheres, para os homossexuais. Esse discurso é vazio, cheio de hipocrisia. Sabemos que a maioria desses que levantam essa bandeira não tem essa moral, esses bons costumes. Uma prova é que quando permitimos que esse tipo de política, dessa linha ideológica, avance, como um canal, um meio de opressão para as minorias que têm menos acesso, menos direito, menos destaque na sociedade, é mais uma forma de oprimir essa população. Essa vertente política só vem prejudicar, e muito, o progresso de uma sociedade mais justa e mais equânime.
MN – O opressor não seria tão forte se não tivesse cúmplices entre os próprios oprimidos. A mulher aceita mais a opressão masculina? Por quê?
Cel. Camila – Quando citei Madonna, falei sobre o conceito de elas serem criadas para uma eterna competição, de serem adversárias, uma eterna ameaça uma para a outra. Foi uma forma que as instituições viram de continuar oprimindo as mulheres, colocando-as como adversárias. É isso que acontece. Primeiro, porque nascemos e crescemos numa sociedade com esse tipo de base, do patriarcado. Daí crescemos acreditando que aquele é o padrão, é o certo, é o que deve ser seguido. É o que está impregnado nas famílias, nas instituições, na sociedade. Todos esses conceitos de que a mulher tem que ser submissa, de que tem uma vocação natural para as coisas do lar, não tem nada a ver. O próprio livro da Simone de Beauvoir aborda muito essas questões genéticas, biológicas, elas não estão ligadas. Na verdade, foi uma formação, uma convenção social para beneficiar o homem. Por isso crescemos aprendendo e acreditando nisso. Toda essa estrutura criada pelo machismo vem desde o nascimento. Então é difícil o processo de quebrar as barreiras, as correntes, e se desconstruir com esse tipo de preconceito.
MN – Por que o mundo continua intolerante para quem faz parte das chamadas minorias, mas que, apesar disso, se rebela e não aceita as imposições que a sociedade lhes coloca?
Cel. Camila – A intolerância do mundo contra quem não aceita os padrões impostos e se insurge, é justamente porque os homens não querem perder o poder, seja consciente ou inconscientemente. Então, aquele que não faz parte da situação privilegiada, de ser homem hétero branco – que possui a supremacia do poder –, desde o início se colocaram como as autoridades que detêm esse poder. Daí criaram toda uma estrutura social para se permanecerem no poder. Isso que nos foi ensinado, de que eles deveriam permanecer nessa situação, e os demais, que não fazem parte, deveriam ser submissos a esses que se colocaram como se fossem superiores às demais classes da sociedade, seja por causa da orientação sexual, do gênero ou da cor da pele.
MN – Respeitar a liberdade e as diferenças de cada um é a forma que temos para criar um mundo mais justo. Parece tão simples e no entanto é tão complicado. Quando venceremos a intolerância e o ódio?
Cel. Camila – Essa é uma pergunta que me faço continuamente, por sermos diferentes. Quando o ser humano vai parar de se julgar melhor que o outro, seja pela cor da pele, pela condição social, pela orientação sexual ou de gênero. Difícil responder a essa pergunta, porque depende muito do desenvolvimento da sociedade, da evolução espiritual e moral da nossa população. Estamos num processo gradativo de evolução, embora muito lento. Quando o homem olhar para si e ver que nada disso torna um ser humano melhor que outro, ou dar direito ao ser humano de oprimir o outro; quando entendermos que somos todos frágeis e suscetíveis às intempéries da vida – essa pandemia veio para nos mostrar isso, morreu pobre, rico, branco, preto, homem, mulher. Espero que possamos perceber, a partir daí, a vulnerabilidade e a força que existe em todos os seres humanos.
MN – Um tema tabu é a presença de homossexuais nas corporações militares. Por mais que sejam “discretos”, tenham aparência viril e não se manifestem sexualmente no ambiente de trabalho, são, de alguma forma, discriminados. Por que um homossexual incomoda tanto a um heterossexual?
Cel. Camila – Infelizmente, o hétero se sente muito incomodado com o fato de outra pessoa se relacionar com alguém do mesmo sexo. E isso é muito curioso. O que é que me importa e o que é que influencia a minha vida o fato de um homem se relacionar com outro ou uma mulher? Mas foram criados estereótipos de dominância, de supremacia, e nesse estereótipo está o homem hétero, que ocupa esse espaço, que é visto como o poder, a autoridade, a dominância e a supremacia. Ele se sente incomodado, ameaçado com tudo que lhe é diferente. É esse o incômodo.
MN – Voltando ao tema do machismo, homem é mais amigo do homem, pois se defendem, se apoiam, são cúmplices. Dizem que as mulheres são cruéis umas com as outras. A senhora sofre preconceito das próprias mulheres?
Cel. Camila – Sim. Inicialmente, eu sentia raiva das mulheres machistas. Eu dizia: meu Deus, já somos tão oprimidas! Como pode uma mulher oprimir uma outra? Uma mulher falar mal de outra, julgar outra mulher porque simplesmente não segue o padrão que a sociedade impôs. Lógico que temos que deixar bem claro que o feminismo não é defender todas as mulheres. “Ah, não, porque é mulher, vamos defender.” Sabemos que existe mulher mau-caráter, ruim, que tem defeitos como qualquer ser humano. E a sororidade, vamos dizer assim, que nasceu do feminismo, que é essa união entre mulheres, de se apoiarem, de defenderem umas às outras, não é no caso de “ah, independente do que a mulher faça, vou defender a mulher”. Não é por aí. Quando falamos das mulheres se defenderem e se apoiarem, nos referimos às situações em que elas são vítimas da opressão causada pelo machismo e o patriarcado. Então a mulher é julgada pela forma de se vestir e simplesmente porque aquilo não se encaixa no padrão dessa sociedade. É o nosso papel apoiar e ajudar essa mulher. Não é em tudo que a mulher faça que vamos balançar a cabeça ou “passar pano”. Sim, eu já fui e sou julgada por outras mulheres. Mas hoje entendo que elas são tão vítimas quanto eu. Elas são vítimas justamente de terem sido nascidas, criadas e formadas dentro de uma estrutura machista e patriarcal, que faz com que elas apontem para outras mulheres, que elas as julguem, a ponto de se incomodarem com as outras que se conseguiram se libertar dessas amarras.
MN – Qual a saída para as mulheres fugirem das imposições sociais, abrirem seus caminhos, conquistarem seus espaços e principalmente se valorizarem como seres humanos?
Cel. Camila – O primeiro passo é o autoconhecimento. É nos enxergarmos enquanto indivíduos, como pessoas. Questionarmos onde estamos, por que estamos naquele lugar, qual o nosso papel social, e como somos inseridos no contexto social. Por que escolhi, por que quero ou por que me foi imposto? Às vezes as mulheres falam: Ah, não! Não faço determinadas coisas, não é porque a sociedade não concorda, não faço porque não gosto, não me sinto bem. Mas será que ela não faz determinada coisa, não veste determinada roupa, tem determinado comportamento porque não se sente bem por ela mesma ou ela não se sente bem com medo do julgamento da sociedade? Porque lhe ensinaram que aquilo é feio, que aquilo não pode. Existe uma estrutura grande por trás, formando o comportamento dessa mulher. Então, antes de tudo, ela precisa se conhecer. O que eu gosto? Quem eu sou? Quem eu quero ser? Qual é minha essência? Quais são minhas vontades? Quando ela olhar para si e entender isso, enquanto indivíduo – quais suas aspirações, onde quer chegar –, vai viver segundo essa diretriz, e se desconstruir. Essa desconstrução vem a partir de estudo, de leitura, de busca pelo conhecimento. Do que é machismo estrutural, do que é o patriarcado. Tudo isso é o que vem nos ajudar nessa linha do autoconhecimento e da autolibertação.
MN – O politicamente correto é chato ou necessário?
Cel. Camila – Primeiro precisamos entender o que significa o politicamente correto. O politicamente correto fala sobre a gente agir, falar, se portar de maneira a não desrespeitar, a não ofender, a não diminuir, a não excluir o outro. Isso se chama empatia. O politicamente correto é você exercitar a empatia. É fazer com o outro aquilo que gostaríamos que o outro fizesse conosco. É evitar fazer com o outro aquilo que não gostaríamos que o outro fizesse com a gente. Então, para que tenhamos uma sociedade justa, uma sociedade em que as pessoas se sintam respeitadas no seu espaço, no seu direito, é necessário que o politicamente correto exista. A partir do momento que eu dou uma opinião, que eu falo alguma coisa que venha machucar, ferir, excluir, diminuir o outro, isso daí já ultrapassa o meu direito, a minha liberdade. As pessoas confundem, distorcem o sentido do politicamente correto. “Ah, não, o politicamente correto é não poder dar minha opinião”. Não, todo mundo tem o direito de dar sua opinião. O que não posso é atingir o outro, machucar ou diminuir o outro. Para mim, o politicamente correto é mais do que necessário numa sociedade que desejamos ver justiça, harmonia, respeito.
MN – O mundo seria melhor com mais mulheres no poder?
Cel. Camila – O mundo seria melhor com mais justiça, com mais equidade. Somos mais da metade da população, então por que somos tão pouco representadas nos espaços de poder? O mundo seria melhor se todos nós nos víssemos equitativamente representados nesses espaços. Por esse motivo, defendo o feminismo, que resumidamente é um movimento que luta pela equidade de gênero. Para que possamos estar representadas nesses espaços também, porque fazemos parte da população, porque temos um olhar diferente, necessidades diferentes, visões de mundo diferentes. É importante, sim, que tenhamos um mundo com esse tipo de equidade. Que nem a mulher se sobrepunha ao homem nem o homem à mulher. Mas que simplesmente tenhamos uma sociedade equânime justa.
Uma resposta
Excelente entrevista, perguntas pertinentes e a Coronel é mesmo uma liderança necessária. Parabéns.