Homenagem póstuma: republicamos o perfil de Dona Bilá (1912 – 2022)

O texto autoral foi escrito em 2015, pelo escritor conterrâneo José Valdemar.

Dona Bilá, cujo nome de batismo era Benedita Buarque de Gusmão, morreu no fim da noite dessa quarta-feira (18), aos 109 anos de idade. Certamente era a pessoa mais velha do município de Maragogi. Faleceu de causas naturais, no Hospital Regional do Norte (HRN).

Em 2015, nosso portal publicou o perfil de Dona Bilá, escrito pelo escritor José Valdemar. Reproduzimos a seguir.

Meu encontro com Dona Bilá – ou Benedita Buarque Gusmão, nome de batismo – se deu na loja de sua sobrinha, no centro da cidade de Maragogi. Sentada num tamborete bem baixinho, de cerca de 20 cm, ela me recebe sorridente, como sempre. Igual uma garota sapeca. Desde que a conheço, ela é assim: inquieta e aparentemente feliz. Ela já sabia que queria entrevistá-la e, tagarela, começa a falar.

Lúcida, diz que nasceu em 27 de outubro de 1912, na cidade de Porto Calvo (AL), terra de Calabar, e que foi registrada três dias depois. Sorrio, perplexo com a riqueza dos detalhes. Dos pais, só lembra os nomes: Sebastião Buarque de Lima e Antônia Maria de Gusmão. Morreram quando ela era muito pequena, por isso não guarda qualquer traço de suas feições. Eram donos do Engenho Apara, hoje denominado Sereno, zona rural de Porto Calvo. Dona Bilá foi criada pelos tios paternos, tempos na casa de uns, tempos na casa de outros…

Veio para Maragogi com 33 anos de idade, e foi morar na Fazenda Samba. Depois, se mudou para a Fazenda Riachão e, em seguida, para Piabas, onde reside até hoje.

D. Bilá tem um “rosto devastado”, como diria a romancista francesa Marguerite Duras. Um rosto natural, cheio de rugas. Mas mantém o corpinho de top: é alta de magra. Locomove-se sozinha, sem dificuldade, pelas ruas, apesar de temer o trânsito caótico. Hesita antes de atravessar uma rua: olha várias vezes para ambos os lados. Não usa óculos, mas revela que a visão não é mais a mesma. Mesmo assim, ainda consegue ler.

Garante não ter maiores problemas de saúde. Sua pressão é 12/8. Tinindo. Taxa de glicose? Excelente. Dorme muito bem, obrigado. Come de tudo, uma delícia. Foi fumante por dois anos, bebia socialmente, hoje não mais.

Evangélica, diz o ano que a primeira igreja da Assembleia de Deus chegou a Maragogi: 1932. Impressionante.

Desvia de assunto, fala de gestores municipais. Diz, sem pestanejar, que o melhor prefeito de Maragogi chama-se João Lyra. “Ótimo pagador”. Aproveito a deixa e pergunto, na lata: e o pior? Ela sorri amarelo, olha para uma sobrinha, para outra, e diz: “Ele me ajudou muito.” Por isso, se nega a dizer o nome do pangarave. Mas a sobrinha diz quem é, se queixando que ficou seis meses sem receber seu salário na gestão do tal. Dona Bilá pede para não mencionar o nome do velhaco.

Na sua profissão de parteira, contabiliza 1.046 partos. Ufa! Mais de mil afilhados. Haja bênçãos. Os mais novinhos não sabem, mas, antigamente, as mulheres pariam em seus domicílios, e as parteiras iam até elas. E mais: aquelas que não tinham parentes por perto, as parteiras ainda lhe davam assistência. Tipo: lavar e cozinhar para a parturiente e seu marido, além de cuidar do bebê. Naquele tempo, Maragogi não tinha sequer posto médico. A primeira maternidade foi construída no primeiro mandato do prefeito João Lyra. D. Bilá foi convidada para trabalhar nela pela primeira dama, Maria Vicência, mas recusou, pois nunca quis se amarrar a emprego fixo, preferia ficar trabalhando assim, pelas casas, como autônoma. “Nunca quis que assinassem minha carteira.”

Levava as parturientes para maternidade quando preciso, quando o parto era complicado. Ou quando se deparava com um enfermo. Ela pegava um carro e carregava-o para o hospital da cidade dos Barreiros, Pernambuco, onde era conhecida como “Ambulância Branca”, de tanto que frequentava esse e outros hospitais e maternidades. Nessa época, criou fortes laços de amizade com profissionais da área, como os melhores médicos da região.

Aposentou-se como trabalhadora rural.

Falando em parto, pergunto quantos filhos teve. Fico surpreso com a resposta: nenhum. Esperava, como era de praxe na região, no mínimo uns quinze. Me pergunto: será que ela nunca casou? Não ouso perguntar, ela muda de assunto. Não quer falar? Que nada! Uns minutos depois, a conversa fica animada, a sobrinha se intromete e revela: diga que todos os seus maridos morreram. Cuma?! Era a deixa que eu queria. Escapa espontaneamente de meus lábios: viúva negra! A senhora matou seus maridos?

D. Bilá então revela um pouco de sua vida amorosa. Casou-se pela primeira vez aos 20 anos. Mas o casamento só durou um ano e oito meses. O marido morreu. Calma, foi de doença. Nunca voltou a se casar. Mas teve outros homens, claro, que também morreram. A derradeira relação foi moderninha. Durou doze anos, mas nunca dividiram o mesmo teto. Depois desse, D. Bilá optou por não mais se unir amorosamente a ninguém.

Para finalizar, ela me lança um desafio: “Você se levanta assim?” E se ergue do banquinho sem nenhum apoio das mãos, de um pinote só. Eu, humilhado, me levanto do chão com a maior dificuldade do mundo. Parecendo que eu é que tenho 103 anos de idade.

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